Sociedade e pudor

segunda-feira, setembro 28, 2009

Por Carlos Alberto Di Franco

A moral - esse conjunto de valores que regem os atos humanos - não é, como querem crer alguns ideólogos da indústria cultural, um simples verniz que retoque as aparências do universo humano. Ao contrário, é a própria condição de sobrevivência do homem neste mundo. Por isso, torpedeados os valores, é todo um universo que desmorona. No plano individual, a pessoa transforma-se num marginal, desprovido de princípios e de rumo; mas não são só esses marginais, organizados em falanges para o que der e vier, que se deixam dirigir pela razão cínica; crescentemente, são todas as camadas sociais que assumem uma visão pragmática e negativa da vida, com a conseqüente generalização da corrupção, da irresponsabilidade e do caos.

Esta digressão é necessária para se entender o alcance social da virtude do pudor. Ao contrário do que afirmam alguns, não é mera questão de convencionalismos transitórios. Na verdade, esta é uma das virtudes que possui em grau mais alto a discreta eficácia de um alicerce. O menoscabo pelo pudor produziu, ao longo dos tempos, fissuras que acabaram implodindo civilizações inteiras.

"Quando quisermos destruir uma nação, deveremos destruir a sua moral. Assim, ela cairá em nossas mãos como um fruto maduro". A receita de Lenin, carregada de cínico realismo, sintetiza a tática adotada por todos os sistemas de dominação humana. Uma sociedade narcotizada pelo erotismo é presa fácil dos interesses ideológicos, políticos e econômicos. A pornografia, estopim da violência, foi amplamente instrumentalizada pelos partidários de Hitler. As bandeiras da "liberdade sexual" e da abolição da censura moral, desfraldadas pelos partidos de inspiração gramsciana, têm propiciado excelentes dividendos políticos. E também a indústria pornográfica, livre do desconforto da clandestinidade, fatura em cima de uma ficção de liberdade.

A experiência cotidiana, contudo, confirma os estudos realizados no mundo inteiro acerca das conseqüências negativas do erotismo. Ninguém pode considerar-se imune aos efeitos degradantes da pornografia, ou a salvo da erosão dos valores causada por ela. A pornografia, aberta ou a camuflada, deprecia a sexualidade, perverte as relações humanas, explora os indivíduos - especialmente as mulheres, os jovens e as crianças -, destrói a vida familiar, inspira atitudes anti-sociais e debilita a fibra moral da sociedade.

A proteção dos valores morais, sem os quais a sociedade entra em desagregação, é um ato de legítima defesa social. Não há dúvida, portanto, de que o pudor é um bem que a lei deve resguardar, punindo as transgressões que o ofendem.

É indiscutível que o cidadão comum ganhou maior sensibilidade para os assuntos referentes à preservação do meio-ambiente. Todos sabem que não se pode impunemente destruir uma mata, eliminar uma espécie animal, etc. Todos, em maior ou menor grau, são capazes de intuir que a natureza tem regras que precisam ser respeitadas. Pois bem, se a intervenção do Estado se impõe no combate às práticas predatórias e à poluição do meio-ambiente, é igualmente necessária na defesa da sociedade contra os efeitos nocivos da contaminação moral.

Argumentos falaciosos são esgrimidos na tentativa de impedir a intervenção do Estado no campo da moralidade pública. O espectro dá censura política, por exemplo, é utilizado como fator inibidor de qualquer esforço de controle moral por parte da autoridade pública.
O artigo 5°, inciso IX, da Constituição brasileira diz que é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença. O preceito constitucional, habilmente pinçado do contexto, tem servido como argumento para bloquear a legítima intervenção do Estado na defesa da moralidade pública. Não se repara, porém, que essa mesma Constituição determina enfaticamente no seu artigo 221, inciso IV, que as emissoras de rádio e televisão respeitem "os valores éticos e sociais da pessoa e da família". O direito à liberdade de expressão, essencialmente vinculado à verdade e ao debate das idéias, nada tem a ver com os abusos da obscenidade.

Com efeito, pretende-se dar à liberdade de comunicação a qualidade de um direito absoluto, esquecendo-se que direito absoluto não significa um direito ilimitado. Afirmar que um direito é absoluto significa que ele é inviolável nos limites que lhe são assinalados pelos motivos que justificam a sua vigência, e sobretudo que esses limites são balizados pelo respeito à dignidade humana e pelos direitos dos outros homens.

A liberdade de expressão é inerente ao sistema democrático. Mas a responsabilidade é o outro nome da liberdade. Fundamentar as decisões democráticas em critérios estritamente numéricos é uma estratégia com trágicos precedentes históricos. As ditaduras, de direita ou de esquerda, costumam invocar pretensos consensos como justificativa para a eliminação da própria liberdade de expressão. Além disso, não há consenso que possa legitimar agressões aos princípios da moral natural.

Na verdade, a democracia, corretamente entendida, é o sistema que mais genuinamente respeita a dignidade da pessoa humana. Por isso, ao contrário do que pretendem os partidários da moral descartável, a atuação do Estado na defesa da moralidade pública é um dever democrático. Paradoxalmente, alguns defensores do abstencionismo do Estado em matéria moral são, ao mesmo tempo, os mais ardorosos propagandistas do intervencionismo estatal na economia e na educação.

Ao longo dos últimos anos houve uma revolução mundial no modo de captar os valores morais, seguida de mudanças profundas na maneira de pensar e de agir das pessoas. Os meios de comunicação social tiveram e continuam a ter um papel importante neste processo de transformação individual e social, na medida em que introduzem e refletem novas atitudes e estilos de vida.

Na verdade, o cidadão médio, alheio a outras fontes de conhecimento e de pensamento, fica inteiramente exposto à influência dos meios de comunicação social, particularmente os eletrônicos. Estes são os verdadeiros canais de informação e, portanto, de formação da opinião pública. Assim, a própria consciência nacional, os padrões culturais e morais, as crenças, hábitos e anseios, são, em larga medida, modelados por esses veículos de comunicação.

É natural que exista uma conexão entre o que a mídia produz numa determinada sociedade e a realidade própria dessa sociedade, pois o produto e o meio interagem reciprocamente; em países de menor desenvolvimento cultural, porém, a possibilidade de à mídia exprimir valores e concepções com relativa autonomia é muito maior. Na verdade, os meios de comunicação social vêm adquirindo uma espécie de monopólio sobre o tempo de lazer das pessoas, e lidar bem com esse monopólio seria a grande responsabilidade de todos os veículos. No entanto, em nome de um conceito distorcido de livre competição, pautado por meros interesses mercadológicos e pela crescente relativização dos valores morais, a mídia ultrapassou todos os limites da permissividade. A demissão da virtude do pudor, decretada por alguns veículos de comunicação social, é um paradigma dessa tendência.

Basta um único exemplo: uma carta, permeada de precoce amargura, foi encaminhada recentemente à redação de certa revista brasileira por uma menina de 13 anos, do Recife. Contava ela que aos 11 anos passava dia e noite diante da televisão. "Aprendi, desde então, a ver tudo com malícia e, em conseqüência, amadureci antes do que devia. Que país é este, que nos passa a irresponsabilidade de uma promiscuidade sem fim?" A carta é o grito de revolta de alguém que teve a infância seqüestrada pela violência da mídia. A dramaticidade do recado merece reflexão.

Os meios de comunicação social, particularmente a televisão, tornaram padrão um tipo de liberalidade inimaginável em nações civilizadas. Nos Estados Unidos, país reconhecidamente democrático, existe a Federal Commission of Communications, ligada ao Congresso, que acompanha o desempenho das televisões. Há, além disso, uma lei federal proibindo pornografia e programas obscenos, o Communications Act. Mas as próprias emissoras têm os seus códigos e eles são cumpridos com rigor. Na rede NBC, as modelos são obrigadas a usar pelo menos alguma peça sobre o corpo em comerciais. Piadas sobre drogas e sexo são vetadas na ABC. São apenas exemplos de como um meio de comunicação poderoso precisa preocupar-se com detalhes, pois é a soma dos detalhes que determina o conjunto. Na França, a Haute Autorité Audiovisuelle, composta por 90 membros, não só assessora o Legislativo, mas também fiscaliza o cumprimento da legislação.

Entre nós, porém, bastam alguns minutos de programação para se reparar que algumas emissoras de televisão vivem num eterno carnaval, apesar de mais de uma pesquisa ter mostrado que o telespectador brasileiro deseja ver programas sérios, nos quais a realidade nacional seja discutida de forma adulta no noticiário, nas novelas, nos filmes, etc. Os próprios espectadores condenam os palavrões e o sexo apelativo, o que é sem dúvida um veredito contrário aos produtores e publicitários.

É característica essencial da democracia respeitar as diferenças de opinião, porque, de fato e de direito, o modo de pensar de todos os cidadãos merece respeito. Segmentos reduzidos da sociedade, contudo, modelam - quase que a cavaleiro sobre a realidade nacional - a cosmovisão de todo um povo. Por isso, é possível exportar, através da mídia, para todos os rincões do país, um padrão uniforme de pretensos valores, de estilos de vida próprios de pequenos extratos sociais, que se quer impor a todos sem a menor consideração pela fisionomia do país real.

Além disso, por mais que a sociedade tenha mudado, tenho a certeza de que o pretenso "realismo" que se alardeia como justificativa para a overdose de licenciosidade que invade os lares, não retrata a realidade vivida pela maioria esmagadora da população. Como lembrou alguém, ainda há muita gente que cultua os valores de sempre, os quais dão sentido e dignidade ao ato de viver. Ainda há pessoas que, diante do vizinho doente, correm a socorrê-lo; e sofrem por uma criança abandonada; e estendem a mão a um amigo. E rezam. E choram pelas vítimas de uma tragédia ou de uma violência, como qualquer ser humano.

A pretexto, no entanto, de mostrar a vida como ela é, arma-se um desfile daquilo que a natureza humana é capaz de produzir de mais sórdido e abjeto. Aberrações e situações patológicas, apresentadas num clima de normalidade, bombardeiam salas de cinema e programas de televisão. E o excessivo apelo sexual já não se limita ao horário destinado ao público adulto, que também não pode considerar-se imune aos efeitos degradantes da pornografia. Curiosamente, uma portaria do Ministério da Saúde determinou que a propaganda de cigarros nas emissoras de rádio e televisão só será permitida no horário reservado ao público adulto; não deixa de ser paradoxal...

Efetivamente, os paradoxos são eloqüentes e refletem o brutal equívoco de uma cultura que agride a dignidade da pessoa humana. A política nacional de prevenção da Aids, por exemplo, é um paradigma dessa tendência. "Limite o número de parceiros e faça sexo com segurança". A mensagem institucional, profundamente desumanizadora, transforma a autoridade pública em cúmplice e promotora da dissolução dos costumes. A última novidade está nos métodos de educação sexual: há até jogos para ensinar o que é a Aids, em que o garotinho ou a garotinha que vencer ganha um preservativo. Como disse alguém, não se cura o avarento dizendo-lhe que se dedique cada vez mais ao seu vício, mas fazendo-lhe ver, com a paciência necessária, que a vida humana é algo mais amplo, mais rico e mais profundo que a mera ânsia de acumular dinheiro. Da mesma forma, os desvios de origem sexual não se curam levando as pessoas a dedicar-se - sem "complexo de culpa" - a todas as formas possíveis de atividade sexual.

As idéias de tabu, repressão e libertação, habilmente manipuladas, exercem um autêntico patrulhamento comportamental. O despudor é saudado como manifestação de modernidade. A decência, contudo, é estigmatizada como anacrônica. As reportagens sobre comportamento, veiculadas nos principais meios de comunicação social, reforçam a artilharia da nova ``moral".

"Quando uma situação se corrompe, a primeira corrupção se dá na linguagem". Esta afirmação, do escritor Octavio Paz, foi confirmada por um triste episódio envolvendo a publicação de um ensaio que reuniu fotografias de meninas de 10 a 17 anos, semi ou totalmente nuas e em poses sensuais. O coordenador das Curadorias da Infância e da Juventude, de São Paulo, apoiado no Estatuto da Criança e do Adolescente, determinou que se abrisse um inquérito policial para apurar as responsabilidades. Procurou-se justificar a lamentável iniciativa mediante um barroco equilíbrio semântico. "Nudez não é pornografia e sensualidade não significa falta de pudor", afirmaram alguns. "A liberdade de expressão está sendo comprometida", reagiu o autor do ensaio, insinuando que, por trás da intenção do curador, estaria a tentativa de ressuscitar controles autoritários. Para a mãe de uma das meninas, de dez anos, o trabalho "foi espetacular, muito artístico". E o pai esgrimiu o surrado argumento: "A malícia está na cabeça deles".

O caso das "ninfetas", que chocou a opinião pública, não é um episódio isolado. Recentemente, o suplemento de um jornal noticiou que os estudantes da sétima série de um colégio de São Paulo, com idades entre 12 e 13 anos, encenaram uma peça que, a princípio, deveria ser apenas o trabalho final dos alunos da cadeira de Teatro. Já no fim do espetáculo, uma das "atrizes" virou-se para a platéia e perguntou a uma das mães qual seria a idade para que a sua filha, também integrante do elenco, tivesse a primeira relação sexual. Os adultos riram, simulando naturalidade. A mãe levantou-se e argumentou que a escolha caberia à própria filha. "Cada um sabe quando está pronto para assumir a sua sexualidade", disse. O diálogo, reproduzido no suplemento, é exemplar. Reflete com crueza a subversão do próprio sentido da maternidade. Indica, além disso, que o clima de decomposição moral já minou os alicerces da própria família.

Na verdade, o veneno contra a virtude do pudor vai sendo pouco a pouco instilado pelos meios de comunicação em todas as estruturas tradicionais. O empenho de aliciamento é evidente. Basta pensar, por exemplo, no marketing de naturalidade com que certa publicação pornográfica promove a nudez de conhecidas figuras do mundo esportivo, artístico, etc. Tal comportamento, festejado com declarações de apoio da família, de amigas e de namorados, indica o grau de cumplicidade a que se chegou. E a própria mulher (mãe, irmã, namorada, esposa), com a destruição da sua identidade, transforma-se em combativa militante da nova "moral".

A guerra contra a virtude do pudor é uma realidade que acarretará um custo muito alto. Na verdade, o pudor justifica-se porque a sexualidade é uma das dimensões profundas da personalidade, algo de que toda a pessoa sadia sabe que não pode tratar com a mesma ligeireza com que se fala do tempo. A degeneração dos costumes tem sido o preâmbulo de uma generalizada degeneração social. Fala-se muito da corrupção que flagela o setor público, e lança-se mão da denúncia mais enérgica e mais pertinaz. Mas já não é mais possível ocultar a verdadeira raiz do câncer que, lentamente, vai tomando conta do organismo social: a crise moral.

A situação, desenhada com as cores fortes de casos reais, é grave. No entanto, justamente em função dessa realidade é que é necessário falar do pudor. Lamentar-se não conduz a nada. Os que condenam os meios de comunicação social, particularmente os eletrônicos, querem que as coisas mudem pela ação dos outros, por decisão das emissoras, por uma intervenção do Estado ou através da censura.

Na verdade, padecemos de conformismo crônico. Existe um elo indissolúvel entre o cidadão que suporta a ineficiência dos serviços públicos, o consumidor que aceita um produto adulterado e o telespectador que, passivamente, sofre os efeitos da poluição eletrônica. Todos deixaram de levar em conta a própria liberdade. É importante que a chamada sociedade civil se manifeste, utilizando os instrumentos de autoregulamentação, a legítima pressão sobre as autoridades e a estrutura legal do Estado de direito.

Uma sentença judicial, determinando que certo jornal sensacionalista editado em São Paulo seja vendido em embalagem lacrada "sempre que houver destaque para cenas de violência, sexo ou emprego de expressões obscenas ou chulas", é uma amostra concreta da eficácia das pressões da sociedade.

A sociedade dispõe de inúmeros instrumentos para fazer valer os seus direitos: o Código de Auto-regulamentação Publicitária, o Código de Ética da Associação Brasileira do Consumidor, etc. A sua eficácia, contudo, depende de um permanente exercício da cidadania.

Uma carta dirigida a um jornal ou um simples telefonema a um anunciante podem parecer providências modestas. Os que conhecem os delicados sensores da mídia, no entanto, sabem da importância dessas iniciativas.

Os meios de comunicação social consideram-se os vigias da sociedade; mas... quem irá vigiar os vigias? Cada um de nós poderia muito bem nomear-se a si mesmo, no seu papel de consumidor, para essa tarefa. Quando os consumidores tomam a iniciativa, acabam sendo ouvidos. As queixas são consideradas. Às vezes, são até mesmo ouvidas sistematicamente. Por exemplo, um método que os editores de jornais têm para decidir como alocar o limitado espaço para as tiras de quadrinhos é deixar de publicá-los temporariamente. Interrompem a publicação de uma tira que suspeitam ter baixa popularidade, para ver quem reclama. Se há poucas queixas ou nenhuma, a tira fica de fora; se há muitas, é colocada de volta. Chamam a essa medida "índice de estridência". Os gritos estridentes são atendidos; portanto, não tenhamos receio de fazer barulho em algo mais importante que as tiras de quadrinhos.

A promoção da virtude do pudor reclama, sobretudo, criatividade. É muito cômodo atribuir à mídia toda a responsabilidade pela falência da educação dos filhos. É ilusório também imaginar que um elenco de proibições governamentais resolva o problema, apesar de constituir um dever ineludível das autoridades públicas. A atitude da família, propondo alternativas estimulantes aos filhos, é a única saída. Uma boa seleção de vídeos, modernos e tecnicamente bem feitos, pode ser a melhor resposta às apelativas prateleiras de certas video-locadoras. E até resgatar o velho hábito do bate-papo em família pode solucionar muitos problemas.

Como lembrou alguém, se a família não cumprir o seu papel, não será a mídia que preencherá esse espaço com a devida competência. E o que resultar como seqüela dessa dose industrial diária de sexo e de comportamento leviano que a mídia despeja em cima de nós será a conseqüência direta do nosso conformismo, da nossa omissão e da nossa irresponsabilidade. A batalha do pudor trava-se no âmago da sociedade civil: cobrando responsabilidades, elegendo com consciência os representantes públicos, exigindo uma legislação que respeite a dignidade da pessoa humana, pressionando legitimamente as autoridades. É uma batalha que exige fibra moral e perseverança. E hoje em dia é uma tarefa intransferível e absolutamente urgente.

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