Prof. Carlos Ramalhete: Puritanismo, pudor, modéstia e adequação cultural

sexta-feira, março 11, 2011

Compilo aqui trechos do Prof. Carlos Ramalhete, moderador da lista de e-mails Tradição Católica e Contra-Revolução, e diretor do apostolado "A Hora de São Jerônimo", sobre o tema do pudor, da modéstia, e sua aplicação aos tempos e culturas, como modo de evitar o puritanismo:

Um leitor perguntou: "Parece-me também haver uma tendência a ver puritanismo em tudo. Pelo andar da carruagem, não demora muito todos livros de etiqueta e comportamento escritos por padres católicos na primeira metade do século XX (p.e. "As três chamas do lar" e "Audit Filia") vão ser chamados de pequeno-burgueses e puritanos."

Ora, todo livro de comportamento e etiqueta procura determinar o que é apropriado para aquela pessoa, naquele momento, naquela sociedade. Um livro escrito na primeira metade do século passado vai certamente trazer conselhos que não encontrariam lugar num livro escrito, digamos, cem anos antes. Os princípios valem, mas é sempre necessário verificar o quanto dali é adequação do eterno à sociedade em torno e o quanto dali é simplesmente eterno.

Por exemplo: a nossa sociedade, infelizmente, tem essa maluquice de "adolescência", em que se impede o jovem de assumir as responsabilidades de adulto que ele deveria assumir. O resultado é que um livro que parta do pressuposto de que a jovem, por ter saído da infância, está prestes a se casar não vai corresponder às necessidades dela na sociedade atual.

Ao mesmo tempo, uma série de problemas, tentações e oportunidades (para o bem e para o mal) que existem hoje por causa da famigerada adolescência precisariam de tratamento, que não vão encontrar num livro de cem ou duzentos anos atrás.

E, enquanto isso, conselhos que têm como objetivo garantir que o jovem se adeque à sociedade de então, sem cair nos erros então comuns, hoje podem fazer com que, ao lugar de se adequar, ele se comporte de maneira percebida como bizarra ou mesmo doentia, sem evitar os problemas e tentações que evitaria se aplicasse os mesmos conselhos cem ou duzentos anos atrás.

O leitor continua: "Mas porque um livro católico de etiqueta e comportamento escrito nos anos 30, e adequado àquela época, não era então considerado puritano?"

Respondo.

"Erasmo [1466 – 1536] recorda o sermão de um monge loreno que, para tornar mais sensíveis aos seus auditores as vascas do inferno, lhes deu a ver o traseiro do seu sineiro. 'Vedes este buraco?', dizia ele. 'Cheira muito mal, mas o buraco do inferno ainda cheira pior!' (H. Estienne, Apologie, II, p. 162, in Bologne, J.-C., História do Pudor, Ed. Elfos, 1990; aliás, recomendo este livro)

No sentido oposto, Baldesar Castiglione, em seu Livro do Cortesão (um tratado de etiqueta, escrito em 1528 com excertos republicados pela Penguin Classics em 1967 com o nome de Etiquette for Renaissance Gentlemen), diz que um homem apaixonado deve não deve escrever nem dizer à sua dama quais os seus sentimentos, devendo, ao contrário, apenas suspirar, fazer um gesto de respeito e comportar-se de maneira tímida, transmitindo sua mensagem apenas pelo olhar.

Note que os textos têm algumas poucas décadas de distância, mas expressam visões tremendamente diferentes do que seria aceitável. O tal monge loreno provavelmente acharia que o Castiglione era afeminado, enquanto o Castiglione o veria como um grosseirão grotesco.

Um comportamento que fosse socialmente aceitável e moralmente correto na corte do Castiglione seria certamente muito mais contido que um comportamento socialmente aceitável e moralmente correto na Lorena do monge. O que eles teriam em comum?

- O cuidado de não colocar ninguém em ocasião próxima ou remota de pecado (pelo jeito o traseiro do sineiro do monge não seria percebido por ninguém como tentador!);
- O cuidado de não causar escândalo real (ou seja, de fazer crer que é correto um comportamento errado);
- O cuidado - e este é o ponto - de preservar a ordem social no que ela tem de moralmente neutro ou bom, procurando mudá-la (não confrontá-la) no que ela tem de mau.

Assim, um livro escrito no começo do século passado vai recomendar respeito a determinados padrões de vestuário e comportamento por eles serem os padrões vigentes naquele momento, naquele meio, sem que isso faça deles algo mais do que o que são. Estes padrões são, no contexto, perfeitamente aceitáveis e o desrespeito a eles colocaria as pessoas em ocasião remota ou mesmo próxima de pecado. Uma mulher vestindo calças, por exemplo, seria algo inaudito, que certamente faria com que os homens as respeitassem menos. Isso é cultural.

Já no nosso tempo, é perfeitamente possível usar calças que não sejam indecorosas (como as das moças que andam fantasiadas de salsicha pela rua, com umas calças que me informaram serem usadas para fazer ginástica); o equivalente da mulher de calças de 1930 seria hoje a mulher de coturnos, cabelo raspado e camiseta sem mangas sem nada por baixo.

Do mesmo modo, um manual de etiqueta para mulheres cristãs no Afeganistão provavelmente vai recomendar que elas nunca saiam sozinhas e sem véu. Não vai nem ser necessário falar de calças!

Em uma sociedade que é culturalmente mais puritana, como a sociedade do auge da modernidade, em que chegaram ao máximo possível na civilização ocidental as regras do puritanismo burguês, haverá sempre uma série de regras que são aceitáveis por serem parte de uma ordem social, mas que não são, por si só, moralmente relevantes. O que as faz relevantes é a ordem social em que elas se incluem, que é um bem, e o fato de elas não serem imorais, mas moramente neutras dentro do contexto social em que elas são vividas.

"(...) [E] um blog católico de etiqueta e comportamento, mesmo adequado à época atual, é automaticamente tachado de puritano?"

Olha, como eu não conheço o tal blogue, não falo nada. Mas aparentemente, o ponto é justamente que ele não é adequado à época atual. A diferença entre pregar que é sempre errado uma moça usar saltos altos e que é sempre errado uma moça não usar uma armação de vime por baixo da saia (como se usava 150
anos atrás; as chamadas "anquinhas") é de grau, não de essência.

O que é sempre errado é se vestir de maneira provocante, o que muitas vezes não tem nada a ver com o tamanho do salto.

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1 comentários

  1. Ótimas considerações do saudoso Prof. Ramalhete, mas esse ramo da argumentação sempre me faz levantar uma segunda dimensão do problema: a de que as normas de modéstia não são APENAS fruto dos costumes e culturas de um povo. Elas o são TAMBÉM, e se fossem tão somente isso, ainda assim o católico teria por obrigação observar os costumes vigentes na sociedade, e não transgredi-los, como insinua o texto e é ressoado por Santo Tomás. Porém, há uma segunda nuance que precisa ser levada em conta: as normas de etiqueta e decência refletem um desenvolvimento real da aplicação dessas mesmas virtudes na Lei Natural, ou seja, existem valores que estão sendo objetivamente resguardados junto com a vestimenta. Se pensamos nas normas de conduta apenas como vigências do tempo corrente, nossa obrigação é apenas caminhar conforme o passo da sociedade moderna (e isso impediria situações objetivas e, por assim dizer, crônicas de escândalo ou tentação); mas se damos conta que essas normas encerram algo de valioso que pode indelevelmente se perder com a mudança dos costumes, então nada garante que uma "mentalidade" permissiva e degradante não vá se instalando pouco a pouco na sociedade. É como se uma fábrica orientasse seus funcionários a sempre fazer bom uso do maquinário, mas fosse paulatinamente trocando as máquinas mais eficientes por outras piores e mais baratas. Mesmo o melhor uso delas não fará a qualidade do produto final tão satisfatória como antes. A reflexão do Prof. é pertinente, e lança muitas luzes sobre o assunto, mas a meu ver é incompleta e pode mesmo ofuscar esta outra realidade.

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